by Ana

Um espaço para partilhar as "tolices" de cada dia, de uma forma descontraída, descomprometida e com algum sentido de humor. Only that.

sábado, 24 de abril de 2010

Olhar do avô

"João, acorda, depressa, levanta-te, há um golpe de estado! Acorda a menina."
Não foi preciso acordar a menina, naquela madrugada de há 36 anos atrás. A menina acordou, sobressaltada com a aflição da avó, aquela mulher que ela se habituara a ver como um pilar de força, de resistência, de coragem, de energia, de firmeza.
E depois, que palavras eram aquelas" Golpe de Estado"? A menina nunca ouvira aquelas duas palavras conjugadas!
Sabia o que era um golpe. Golpe, para a menina, que tinha dez anos, em 1974, era uma ferida. Ainda não sabia que poderia aplicar-se a palavra "golpe" a sentimentos, como sinónimo de "facada" pelas costas, a actos de cobardia. E Estado, era Estado de Nação ou estado do verbo estar. Que confusão! A Nação tinha uma ferida? Quem tinha feito uma ferida à Nação? Onde era a ferida da Nação?
Avó, o que se está a passar? Avô, o que aconteceu?
Era de madrugada. Sim, a avó levantava-se cedo, muito cedo, ainda o sol estava a nascer lá para as bandas da democracia ou do comunismo por isso ela sabia tanto, trazia sempre as notícias muito frescas, tal como as frutas e as hortaliças que vendia no seu "lugar" na Av. dos Pescadores, nº 95, onde a menina cresceu, desde os seus quatro dias de idade.
Mas aquele dia foi diferente. Se foi...
A avó fez tudo direitinho, mas estava nervosa, muito nervosa. Telefonava para o pai da menina, que apareceu pouco tempo depois. Ninguém sabia muito bem o que fazer. A menina foi para a escola, mas a professora mandou todos para casa. E a menina continuava sem saber quem tinha feito uma ferida na Nação! Que coisa, ninguém explicava nada.
Na loja da avó, todos queriam comprar tudo, mas a avó, o avô e o pai , também queriam guardar muita coisa para casa. O pai da menina, foi a uma das malhadas e matou um porco que trouxe para casa da avó e colocou o animal morto, esventrado no chão, no meio da cozinha. Até o armazenamento de pilhas não foi deixado ao acaso, pois a electricidade podia faltar, porque "nunca se sabe no que pode dar o golpe de estado". A casa da avó parecia que era uma espécie de Natal, mas sem presentes, decorações e com alguma apreensão. A menina nada entendia. A família reuniu-se toda lá. Depois começaram a perguntar por umas pessoas que ela nunca ouvira falar antes. "Onde se meteu o Spinola?", entre outros. Tudo estava colado à televisão. O avó preferia ter o transístor, como ele chamava, colado ao ouvido. A menina não percebeu muito bem porque os olhos do avô, na altura com 77 anos, brilhavam tanto com a ferida que tinham feito à Nação.
E, durante algum tempo, ninguém explicou à menina o que era "Golpe de Estado", mas o brilho que era vira nos olhos do avô chegou para a tranquilizar.
Mas depressa aprendeu o que era, ou o que tinha sido um Golpe de Estado. Ouviu da boca do seu avô o testemunho de uma Nação que ela não conhecia e compreendeu o porquê do brilho do seu olhar naquele dia. Percebeu a "felizarda" que tinha sido por ter chegado aos 10 anos de idade sem saber o significado da expressão "Golpe de Estado". A eles, seus avós, o agradece.

5 comentários:

  1. Pois lá para as bandas em que me encontrava, só se soube do 25 de Abril no dia seguinte...
    De qualquer forma, apesar das transformações que a revolução operou na minha vida (umas boas, outras más), sou menina para dizer 25 de ABRIL SEMPRE!!!
    Se hoje temos dificuldades, o que são elas quando comparadas com as que tínhamos? Mal ou bem, podemos insurgir-nos e manifestar a nossa vontade.
    Cabe-nos, por isso, fazer lembrar aos mais novos que houve muita gente que sofreu e morreu para que pudéssemos viver em democracia.
    É o que tenciono fazer ao almoço, dando mais uma liçãozinha aos meus sobrinhos bem amados...
    Salvé!!!

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  2. We,
    Não sei porquê, mas cheira-me que não vais ter uma tarde fácil.
    Boa sorte!

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  3. Ana
    Tive um dia 25 de Abril bem diferente do teu. Se te apetecer ir ver, está no dia 25 de Abril do ano passado.
    Bjs

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  4. Teresa,
    Sem dúvida muito diferente do meu. Tv pela idade (sim...), tv pelo facto de viveres na capital e eu na província.
    Bjs

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  5. Belo testemunho Ana. Adorei as reflexões da menina.
    Eu não estava cá. Antes da Revolução dos Cravos acontecer, a minha mãe veio buscar-me.

    Beijocas

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Olá, então diga lá de sua justiça...