No Natal de 1985, Elvira já viúva de um casamento que nunca havia celebrado, cansada da luta de uma vida feita de ganhar guerras e perder batalhas, deixou-se vencer pela batalha nostálgica a que chamam magia do Natal.
Certamente, o seu único filho que durante o ano a ia visitando a espaços, passaria lá umas horas antes da consoada, levaria até casa, partilhariam o fiel bacalhau e zás pás trás, à meia noite estaria tudo acabado, pois que o menino já nasceu, a meia noite marca o tempo e esse dita o calendário e o Natal acabava assim.
Naquele ano, o tempo trocou-lhe as voltas e antes de ter tempo para pensar no bacalhau do Natal e nas filhós da sobremesa, a cabeça começou a andar a roda que nem a lotaria santa. Hoje tropeçava aqui, amanhã ali, depois acolá...
Um dia o tropeção foi tão grande que ficou de boca à banda, como o povo costumava dizer. Repararam então que havia tido uma sucessão de pequenos AVC's, tudo por conta da ansiedade do bacalhau...ou das filhós, ou seja, dele, do Natal.
Valeu, naqueles idos, a medicina já estar suficientemente avançada para lhe permitir o regresso a casa a tempo de a sentar à mesa no dia do bacalhau, não fosse, horas antes do fiel ser servido, a grande lutadora que eu sempre conheci ter revertido o seu estado clínico por completo, e do aperto do coração a crise passou para a largueza dos pulmões, em toda a sua plenitude.
Era mesmo uma declaração de guerra à confraternização cínica, hipócrita e fingida da época. Uma declaração de guerra profunda, visceral, para a qual as palavras lhe faltavam, mas que se podia ler no verde magnético dos seus olhos, nas altas febre que fez os doutores lhe diagnosticarem, sem demoras e margens para dúvidas, a doença de que Elvira padecia: natalite.
E de natalite ficou internada.
De complicações e efeitos secundários de muitas natalites mal tratadas viria a falecer, no mesmo hospital, um mês e três dias depois, antes, pois, que a pascoelite, pudesse agravar ainda mais agonia.
Feliz Natal, Elvira.